letra de fado gago - sérgio godinho
fado triste fado negro das vielas
onde agora é que são elas
encomendaram-me este fado
“mas só se for do falado”, fado falado?
pagam bem e dão trocado
o fado é pago mas se eu sou gago só
o consigo balbuciar
(melhor cantar)
mãos caprichosas que sebosas
mimoseiam a guitarra
mimoseando o fado nefando
que se entrenha
nas vielas mãos tagarelas indecentes
maõs tão juntas, tão ardentes
os dedos quentes insolentes
só se amainam na guitarra
espera aí já percebi que entoando
mesmo falando, mesmo falando
se falar como que em verso
não gaguejo e até converso
(como as tais mãos na guitarra)
eram -ssim essas mãos
mãos de ferro e mãos de farra
desse chico de má-vida que
(p’ra ser fiél à história)
andava na boa-vida com a glória
e está bom de ver
que o mulherio de alfama
que é todo de alta linhagem
achava aquilo suspeito, vem de viagem
esse chico marinheiro, todo feito
e vá de pendurar âncora
na varanda da pequena
(estão a ver a cena)
e está bom de imaginar
(mesmo sem ver)
que dentro desse lugar
o que tinha a mercearia mesmo em frente
tudo era transparente
o chico, quando dormia
era marinheiro em terra
era a paz depois da guerra, a sua glória
por isso dormiam juntos sem divisória
mãos muito sábias tantas lábias
nas linhas das quarto palmas são duas almas
irmanadas pelas sinas da paixão
corpo na mão
mão que esvoaça e amordaça
a sensatez de cada vez
que o fado canta esqueço tanta
da gaguez
mas um dia, há sempre um dia
(moeda ao ar)
a cara e a coroa
viram a sorte mudar vamos lá explicar
é que o chico, c’a memória
de ter amor de mulher
vez à vez, em cada porto
não cuidou de amar a glória
foi-se à fruta no pomar
deixou a planta no horto
ou seja, resolveu catrafilar
toda a mulher que p-ssava
na rua para onde a glória
e aqui vai mais desta história
espreitava, ah, que a glória é mulher tesa
quando viu o chico rua abaixo rua acima
atracado a uma, “pirua”, uma garina
de resto bem conhecida
daquelas que faz p’la vida
e ela toda pimpante e ele todo galante
veio-lhe à boca o ciúme
e a navalha foi lume
brilhando de raiva
todo este bairro, que saiba
que os dois que ali vão
vão ter que morrer
ai, vai correr muito sangue
eu esfolo, estrafego
eu pego nos dois
atiro as carcaças ao rio
e nem olho para trás
tudo isto faz
alarido e o chico já ferido
só tenta dizer, glória que fazes?
que morro sem quase
ter tempo de me arrepender
dá-me uma oportunidade
e nesta cidade
eu prometo ser teu
eu quero morrer no mar alto
e depois ir p’ro céu
mãos homicidas amanticidas
-ssim eram se não fosse o olhar doce
por um instante
de um homem tão inconstante
mãos que da glória têm o nome
e em seu nome vão amar
eu fico gago com o af-go
que essas mãos souberam dar
e o af-gar dessas mãos
já desenha na pele
a promessa futura
jura, vá, jura que és
todo meu ‘té ao fim
todo, todo de mim
glória vou desembarcar
dessa vida em que andava
à deriva no amor
chico, os meus braços de mar
dão-te abrigo e calor
e -ssim acaba esta história
o chico c’o a glória
está bom de se ver
ambos com vidas atrás
vão atrás duma vida
em que é tudo viver
quem fala -ssim não é gago
(não quero voltar a um -ssunto encerrado)
mas digam-me lá
se eu não sou gago
e canto o fado
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