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letra de modo avião (história completa) - lucas santtana

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[parte 1]
(anunciante do aeroporto)
last call for flight 2-4-1-0 to rio de janeiro. board immediately at gate 2
*digitando no celular*
(moça do aeroporto)
– your p-ssport and boarding p-ss, please. thank you and have a nice flight!
(piloto)
– a partir desse momento, todos equipamentos eletrônicos, inclusive os celulares, deverão ser desligados ou mantidos no modo avião durante todo o voo. from this moment and on, electronic devices, including cell phones, must be turned off or kept in airplane mode during the entire flight

[toca só o som]

[lucas, maria, outros]
– chicken or pasta? chicken or pasta?
– chicken
– excuse me, chicken or pasta?
– ah, what does the pasta have?
– what does the pasta have? do you have menu cart?
– oh, yes
– could you check, please?
– huh… chicken
– what would you like to drink?
– water
– what would you like to drink?
– diet c-ke
– é sério que você vai comer isso aí?
– pois é, né. é o que tem. cê não vai jantar, não?
– não, eu nunca como nada
– como -ssim?
– daqui a pouco eu peço um blood mary. alimenta mais que esse prato aí
– ah, tá. cê tá lendo o quê?
– eu tô lendo uma dessas pesquisas britânicas sem sentido. essa aqui tá dizendo que se você solta um ser humano num lugar descampado, venda os olhos dele e manda ele andar pra frente, ele vai sempre andar em círculos
– ah, tá. ela vai voltar sempre pro ponto de partida
– exatamente. a gente agora podia tá voando em círculo e não ia perceber, né?
– é verdade. quando você tá no avião, você não… você não tem -ssim uma sensação de que cê tá sonhando acordado? eu não consigo acreditar em nada aqui dentro. não acredito nesse mapa aqui que mostra na tela, nem no horário desse relógio
– você não acredita no relógio?
– não acredito. não acredito. pra mim aqui é como se a gente tivesse -ssim… como se não tivesse nem tempo nem espaço, sabe? meio que, sabe, a gente não tá no fuso de onde a gente saiu nem pra onde a gente vai. a gente não tá em nenhum país. isso aqui é como se fosse um não-lugar. não posso virar pro comandante e falar: “ô, para a caravela que eu quero descer”. a gente fica entregue a esse… esse limbo, -ssim. sempre que eu entro no avião nesses voos longos, o sentimento que eu tenho é: cara, se entrega pro modo avião
– é muito louco, né?
– muito
– a gente não vai se acostumar nunca. que viagem: um monstro de metal de sei lá quanta toneladas, se solta do chão, atravessa o oceano tão rápido… isso não pode ser normal, né?
– é verdade. mas esses voos comerciais já existem há um século, né? já tem tempo isso. mas eu te entendo. mesmo -ssim parece uma coisa do futuro. eu sempre penso nesses filmes, livros de ficção científica que sempre falaram dessa máquina do tempo. mas a verdadeira máquina do tempo é o avião. a gente entra aqui, 14 horas depois pisa em outro canto do mundo, com outra língua, outra história, outra cultura. quase outro planeta. é muito difícil de acreditar
– e em mim… você acredita?

[toca streets bloom]

[monólogo]
essa caminhada por ruas que você vê amanhecer pela primeira vez, o vendedor de peixes na calçada, a oração dos homens descalços, tudo o que você conta baixinho, dentro da sua cabeça, pra essa mulher que você acabou de conhecer no avião. como se houvesse uma voz narrando a sua vida e você fosse outro e se visse lá do alto caminhando pelas ruas que você vê amanhecer pela primeira vez. não importa onde você esteja, a humanidade segue submersa num atoleiro de carências simuladas, onde o movimento monolítico de lucratividade apenas alimenta um capitalismo voraz cada vez mais ininterrupto. 24 horas por dia, sete dias na semana. transnacionalmente por sobre ruas barulhentas demais, pessoas orgulhosas de estarem sempre ocupadas demais, conectadas demais e ao mesmo tempo tão longe umas das outras. representadas por perfis e avatares em telas de lcd. enquanto esses clones interagem à distância, onde estarão suas almas? essa caminhada pelas ruas que você vê amanhecer pela primeira vez te despertam esse tipo de pensamento. a sua mente vaga e você coloca seus fones de ouvido para se livrar dos barulhos da cidade. poder pensar melhor nessa mulher que você acabou de conhecer no avião. contar tudo isso pra ela, até os pequenos detalhes dos anjos nas faixadas dos prédios, que agora se misturam com o sorriso dela. essa caminhada por essas ruas onde você não entende nada o que escuta ou lê. é como se você fosse uma criança -n-lfabeta. te deixam sonhando acordado e imaginando como seria um novo encontro com ela

[toca modo avião]

[lucas e maria]
– que preguiça!
– cara, eu tava muito precisando dessa praia, tô muito cansado
– ai, e essa maresia?! nossa, esse cheiro é bom demais
– esse cheiro é uma delícia, né?
– cara, por falar em cheiro… ontem, no meio da tarde, eu senti o seu cheiro
– sério?
– eu tava num ônibus, tava indo pra… pra aquela minha médica chinesa
– sei
– aí o seu cheiro veio! o cheiro do seu corpo! cara, podia ter vindo qualquer cheiro, o cheiro da chuva lá fora, da fumaça dos carros, mas veio o seu cheiro!
– cara…!
– eu não tava nem pensando em você, eu tava… eu tava lendo um texto sobre prosopopeia
– prosopopeia? o que é prosopopeia?
– prosopopeia é… como se fosse uma figura de estilo, -ssim. sabe quando você fala “o sol está triste”? é, quando você usa… usa os seres inanimados, objetos, seres irracionais, e mistura com ações e com sentimentos humanos
– e eu me enquadro o quê nisso tudo? nos seres irracionais?
– claro! óbvio! cara, mas muito doido. seu cheiro veio, -ssim, de baixo pra cima, sabe? -ssim, como se tivesse no meu cabelo, todo impregnado. muito doido! eu cheguei a procurar você no ônibus
– mas cê sabia que eu não tava aqui
– eu sabia que era impossível, você– você não tinha nem chegado
– não, é, eu tava vindo de santa bárbara do oeste. eu te falei que eu tava vindo pra te ver
– pois é. o que me deixou bastante surpresa, diga-se de p-ssagem
– por quê?
– ah, porque é contra tudo o que a gente tinha combinado
– como -ssim?
– a gente não tinha combinado que nossos encontros seriam restritos?
– restritos como?
– restritos, ué. sei lá, que nem nessa praia aqui, vazia. esse cenário aqui, que não é meu, não é seu, não é de ninguém. só a gente mesmo
– pô, mas a gente já se encontrou em tantos outros lugares
– eu sei, mas sempre a gente viajando, sempre com a mala na mão, sempre na casa de outra pessoa, com as fotos de outras pessoas nas paredes, enfim… não era coisa da gente
– pô, maria, você falando -ssim parece que cê não lembra de nada que a gente viveu nesses últimos meses
– ah, não é verdade, eu lembro de tudo. nossa, eu lembro demais da primeira vez que a gente se viu, no avião
– lembra do “chicken or pasta?”?
– meus “blood marys”. eu lembro da primeira vez que eu fiquei nua pra você
– isso eu lembro também
– lembro que você descobriu uma pinta na minha bunda. inacreditável! sabe que ninguém nunca tinha reparado nessa pinta?
– jura?! é porque é…
– era pequenininha
– é, e não é na bunda, -ssim, é ali na dobradiça da bunda
– você é muito observador
– vem cá, cê ficou falando de… de encontros restritos e tal, mas depois trouxe à tona todas as nossas primeiras vezes. isso é o quê? é uma… é uma maneira de continuar fazendo planos entre a gente?
– não, não tô fazendo plano nenhum. nem que eu tivesse solteira. a gente não ia dar certo. eu não consigo mais ver a gente junto. estranho, né?
– nem se a gente tivesse um pacto de… infidelidade?
– mas não é exatamente isso que a gente tem agora? figura…!

[lucas e alice]
(telefone tocando)
– alô?
– alô. oi, tudo bem? desculpa, cê tava dormindo?
– quem é?
– é… você me deu seu número no avião, lembra?
– oi, maria!
– não, não, meu nome é alice
– alice? pô, foi mal, alice, desculpe
– tudo bem
– eu não sei por que que eu falei maria. na real, eu ainda tô meio no jet lag e eu tomei uns remédios pra dormir no avião
– é, você tava bem doidão naquele voo
– ah, é? por quê? eu falei alguma besteira?
– olha… depois que cê entornou a segunda daquelas garrafinhas que a gente ganhou…
– putz!
– cê começou a falar umas coisas… como é que era mesmo? ah, um papo meio nada a ver sobre celulares e fósseis
– celulares e fósseis?
– é. cê ficou… cê ficou um bom tempo aí falando que os… sei lá, que os celulares são feitos a partir do mundo mineral. e aí que eles tinham dentro deles, -ssim, o resto de tempos p-ssados, tipo, que esses fósseis tavam adormecidos há muito tempo embaixo da terra, e aí a gente trouxe eles à tona e fica andando com isso no bolso. uma mistura de poltergeist com tamagotchi
– ah, tá. nossa, eu não lembro nada desse voo
– ah, você não lembra?
– não lembro. mas eu tenho esses apagões às vezes. eu disse mais alguma coisa?
– você disse, sim. cê disse que me conhecia do futuro
– uau!
– é, e que a gente morava numa fazenda no interior da tailândia
– olha!
– lá não tinha nem sinal de celular nem de rádio, nada. não tinha nem energia elétrica, na verdade. e daí você falou dessa nossa vida no futuro
– ah, é? e como é que era a nossa vida no futuro?
– olha, era interessante. a gente fica trepando sem parar e lendo muito
– nossa, adorei!
– é, não tinha… não tinha internet, não tinha tv, não tinha nada, então basicamente a nossa vida no futuro era – ou vai ser – trepar, ler, comer e dormir muito
– pô, adorei a nossa vida no futuro, hein?! tomara que chegue logo. e… e sobre esses livros aí?
– que livros?
– ué, os livros que a gente vai ler no futuro
– não, você não falou nada disso
– ah, não?
– cê apagou, cê dormiu no meu colo. feito uma criança
– nossa, que vergonha!
– não, não tem vergonha, não. eu achei bonito o jeito que cê se entrega
– que bom. e que horas são agora?
– olha, são quase oito da noite
– caralho, já são oito da noite!
– vem cá, cê tá com fome? tá afim de comer alguma coisa?
– tô, tô. tô morrendo de fome
– se eu te der um endereço, você me encontra lá daqui a, sei lá, meia hora?
– beleza, me manda o endereço pelo whatsapp
– falou

[toca um enorme rabo de baleia]

[lucas e atendente]
– mesa pra dois, por favor
– qualquer uma, pode sentar
– brigado

– olá!
– oi, graciela, tudo bem? nossa, que coincidência te encontrar aqui
– como -ssim? eu que achei estranho você marcar a sessão num restaurante. mas foi você que combinou comigo
– eu?
– -n-lisar essas coincidências também faz parte do meu trabalho
– não, eu sei, mas é porque na verdade eu combinei de encontrar outra pessoa aqui
– quem?
– uma mulher que eu conheci no avião
– com licença. os senhores aceitam vinagre?
– vinagre?!
– é… não, ‘brigada. eu só vou querer uma lagosta batidinha no liquidificador, por favor
– sim, senhora. e pra beber? temos suco de luz e suco de trevas
– não, suco de luz, por favor
– eu não quero nada, ‘brigado
– muito bem. então agora você podia me falar um pouco mais sobre essa mulher… essa mulher do avião
– na verdade eu ainda não sei muito sobre ela. encontrei ela num voo, e a gente…
– você nunca sabe muito bem sobre nenhuma. não dá tempo, né?
– verdade
– e o que é que você faz com isso?
– ah, eu sei lá. eu tô sempre viajando, toda hora mudando de lugar
– e talvez seja a sua casa esse outro lugar onde você nunca vai chegar. e talvez seja sua próxima mulher?
– você pode fazer mais uma receita pra mim? meu remédio tá acabando
– vamo ver
– não. por favor. eu tô dormindo muito mal
– hmm… na verdade o seu problema é o contrário
– por quê?
– nunca tá acordado. você é fechado. esse tempo todo vivenciando essas coisas dentro da sua cabeça, dando umas voltas, mais voltas, sem nunca parar, nem nunca chegar, como num carrossel
– é, eu… diria que é… que tá mais pra uma roleta-russa
– é, verdade, é uma imagem melhor. porque aí são só duas opções: ou a bala sai do cano ou você reconquista a vida quando o tambor roda e a bala não sai. aí é vida ou morte, não tem meio termo. e mesmo que tivesse, as pessoas não gostam muito de meio termo
– não gostam? como -ssim? é só você pegar um ônibus hoje, entrar no metrô, andar na rua. o tempo inteiro as pessoas sem nenhuma paciência, totalmente alheias pro mundo real, tudo que elas querem o tempo inteiro é voltar pra frente de uma tela. olha esse restaurante, esses copos, esses garfos… essa materialidade totalmente desgastada, totalmente vulnerável a desaparecer a qualquer momento. olha ao nosso redor, graciela! as pessoas não conseguem largar o celular nem pra comer. se tem um lugar onde as pessoas tão vivendo hoje, é no meio termo
– e você quer isso também?
– olha, a única coisa que eu queria hoje era encontrar essa mulher, pegar na mão dela e sair andando pela cidade
– tá, mas eu acho que pra isso você vai ter que escolher. e até hoje você tem escolhido a solidão

[toca vamos andar pela cidade & brasa de dois]

[lucas e “outro”]
– olha! não é essa aqui p-ssando?
– não. mas foi aqui no centro cultural que a gente ficou pela primeira vez. a gente não tinha nenhum amigo em comum no meio dessas 12 milhões de pessoas, cara. inacreditável!
– nossa! olha essa na praia que gostosa!
– foi uma tarde linda de sol e frio, bem em frente aqui do hotel marina. tava até rolando uma despedida de solteiro, a gente demorou de entender que era isso. uma parada muito ridícula
– ah, mas ela era bonitinha? […] e aquela debaixo do vão do masp?
– ali foi o começo do fim
“próxima estação: santa cecília. desembarque pelo lado direito do trem. next station: santa cecília.”
– e aqui? alguma te interessa?
– a gente tá bem perto da casa dela
– achei! ali na frente do adamastor
– ha, podia ser lá mesmo. era nessa esquina que a gente se despedia todo dia de manhã, antes dela ir pro ensaio
– porra, cê tá exigente, hein?! só serve ela agora, é?!
– rapaz, que mal lhe pergunte, quem é você?!
– eu sou o “outro”. eu só tô querendo ajudar, cara. grita o nome dela alto, vai. quem sabe ela te escuta…

[toca o nome de maria]

*som de chuva*

[toca árvore axé]

[lucas e marina]
– maria…
– é uma palavra bonita. você quer?
– o quê?
– que eu seja maria?
– ué, não é o seu nome?
– não, eu me chamo marina
– então por que que, a cada vez que a gente se encontra, você tem outro nome, outra voz, outro rosto?
– tá vendo você ali?
– aonde?
– ali, dormindo na poltrona 7d
– caramba! então quer dizer que… aquele nosso encontro no avião, depois na praia, aquele telefonema…
– foi tudo um sonho dentro de um outro sonho dentro de um outro sonho…
– nossa, parecia tão real!
– por quê? agora não parece?
– sim, parece muito, mas eu… só preferia não tá dormindo
– dormir é tão bom. é o nosso único momento de pausa nessa sociedade frenética. todo mundo cada vez mais escravo de si, isso não é um tempo humano. o sono… na verdade, o sono é o nosso último refúgio
– então quer dizer que você faz parte do meu sono?
– eu sou o seu sono. seu sonho. eu sou o amor… real e totalmente material, o tempo todo ao seu redor. como o som, tá ouvindo? […] agora eu vou fechar os olhos no avião, vou começar a dormir, vou sonhar com você. no sonho, você me pergunta o que eu tô lendo, nós começamos a conversar…
– e eu?
– você também é um sonho meu. mas agora você precisa acordar. o comissário de bordo tá vindo na sua direção, ele vai pedir pra você colocar sua cadeira na posição vertical, apertar os cintos de segurança, e ter um bom pouso
– sir, could you take seats up in position, please, and fasten your seatbelts? have a nice landing

*aplausos*

[comissária de bordo]
“senhores p-ssageiros, bem-vindos ao rio de janeiro. pedimos que permaneçam sentados e mantenham os cintos de segurança afivelados até que o sinal luminoso se apague. a partir de agora, é permitido utilizar seus aparelhos eletrônicos normalmente
ladies and gentlemen, welcome to rio de janeiro. please remain seated until the plane comes to a complete stop and the fastened seatbelt sign is turned off. at this time you may resume using your electronic devices.”

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