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letra de abismo - kalew nicholas

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[áudio]

[verso]
eu sou aquele que, no meio da noite
tá no teu quarto durante a paralisia
enquanto a mente acorda, corpo dorme
enquanto o corpo dorme, eu te olho
o ventre se arrepende e teu ar some
enquanto tu se acalma, eu te exploro
te torturo e tu não pode ver meu rosto
teu ouvido é obtuso, tu sempre faz de novo
sempre negligente com o que sentem
tu nega afeto até quando cê sente
pensou em si e perdeu o par pra sempre
por pura covardia e egoísmo valente
não lembra da voz da própria mãe, né?
ignorou suas falas e vive com fantasmas
de memórias que sobrevivem em jaconé
longe das tuas falhas
tu merece a asma
na vez de visitar tua vó de cama
entregou-se por carência rumo à lama
morre ao dizer te-amo a quem ama
e desperdiça foco no que nunca terá
tu respira fundo e eu me afasto
tu sabe que vai voltar a se mexer
sabe que o alívio vai vir logo, logo
mas, por favor, não esquece:
eu sempre volto
[verso 2]
se teu avô materno tivesse te enchido de presentes
tu ainda usaria o passado e o futuro de desculpas
da mesma forma que tu não trata como gente quem te antecede
e se culpa pela culpa
tu faz o certo com as piores intenções
tu é esperto, mas só com teus limões
a vida deu amor e tu queimou com o camões
me diz, por favor: o que tu chama de afeições?
teu teto, teu estômago cheio
um ventre, afeto e os seios
a parede ao redor e tu no meio
reclamando não ter móveis e espelho?
facínora
reclama do não-recíproco
pois só dá a quem não quer
e insípido
não agradece quem sempre te amou e te deu colo
tu é ridículo
tu merece o abismo e essas cenas
que inundam sua mente com enfisema

[áudio]

[verso 3]
eu observei a cena pelo espelho
tu e ela sentados, tu de frente, ela de lado
ela entregue em tuas mãos
que repetiam a arpejo nos cabelos curtos
daquela por quem tu transbordava afeto
e agora tudo que te resta é ler mensagens antigas
rir sozinho das mensagens e no banho chorar
por ter perdido a pessoa mais incrível que passou pela tua vida
e saber que mesmo passando horas rolando feeds
tu não vai encontrar ela em outra
outra vez você perdeu
e dessa vez foi pra sempre
quando tu olhar pro céu e perguntar: “por quê?”
eu mesmo vou te responder: “por você”
[verso 4]
há algo no meu ódio por ti que não passa
paradoxo de bootstrap
haverá e talvez haja
hoje há e ontem houve
outros ouvem e cê cala
como posso te defender
se tu não mexe o rabo?
reclama da pobreza
mas não busca trabalho
reclama do namoro
mas não é bom namorado
reclama dos amigos
mas não deixa de ser fardo
reclama da tua culpa
mas faz sempre tudo errado
reclama não haver perdão
mas não sabe ser perdoado
tu lamenta a tua vida
mas tu que é lamentável

[verso 5]
tu confunde tua poesia com manual de superar pé na bunda
sendo que tu remói traumas ab aeterno, ad infinitum
te ver sofrer me faz sofrer, mas é deleite
você gosta de si mesmo tanto quanto ela gostava
e isso é quase nada
por isso, recordando o jeito que a cada dia te tratava
e os motivos pra ignorá-la
você sente saudade do beijo, do riso e da presença afetada
da voz e da maquiagem borrada
você ama teu pai e não fala, só escreve
próximo
você é um ser humano tão bosta
que foi capaz de criar um pós-relacionamento tóxico
desapontou uma das amigas que mais se importou com teus nódulos
enquanto tu por puro egocentrismo ignorava nós muito maiores, mórbidos
será que tu vai se satisfazer sabendo inexistir bianca em outros seres?
que sua vó e sua mãe talvez demorem e tu precisa se esforçar pra tá entre eles?
é tua fraqueza que te faz pensar em suicídio ao perder alguém que nunca te amou
e só não te incentivo pois não posso me extirpar de ti
não sei teu suicídio é desejo ou abstração
nem olhos se enxergam, nem terceiros te explicam mais
eu te viro as costas como num magritte
mas os livros te refletem melhor que posso ver
tu dá ouvidos à voz que te diz que ela não te dava valor
sendo que sabe muito bem de todo amor que ela te dava
sabe que ela te protegeu, levou em conta tua aflição
enquanto tu abandonava o que ela te ofereceu
fingindo ser ela quem partia e tu quem só chorava
tu não chora mais a morte da tua vó
nem sente falta da mãe que os vermes lhe tomaram
desapegado, injusto e só
é pelo desafeto que meço tua febre
pulando de cep em cep tu cede
aceita que não te querem
mas afeto não dá nem pede
e ainda espera que sintam dó
se apega a amigos a vinte mols
e dedica à família uns poucos watts
minérios e proteínas do solo
tu é pó e quer se reduzir a cinza pelo que sente
se o que tu pensou como teste te veste
quem chora tua perda a cada bimestre?
do que adianta reclamar da tua mente
se pra ser melhor tu nunca se mexe?
já fui eu a te manter assim inerte
mas hoje te viro as costas
pois cansei e tu se basta
vê se cresce

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