letra de 1.º de maio - josé mário branco
[letra de “1.º de maio”]
[estrofe]
quando nós, operários da fábrica areal, chegámos ao mercado, encontrámo-nos com os manifestantes das outras fábricas que já eram muitos milhares
levávamos cartazes que diziam “operários, apoiem a nossa luta contra a redução dos salários! operários, uni-vos!”
desfilávamos calma e ordeiramente; cantava-se “a internacional” e outros hinos revolucionários
a nossa fábrica marchava diretamente atrás da grande bandeira vermelha
atrás de mim seguia a minha mãe. quando foram buscar-nos manhã cedo, ela saiu da cozinha já pr-nta
e, quando lhe perguntaram onde ia, respondeu “vou com vocês”
tal como ela, seguiam-nos muitos outros que o rigor do inverno, a redução dos salários e o nosso trabalho de agitação tinham trazido até nós
antes de chegarmos à avenida cruzámos alguns polícias. não vimos soldados
mas da esquina da avenida com a praça deparou-se-nos subitamente um duplo cordão de soldados
ao avistarem a nossa bandeira e os nossos cartazes, houve uma voz que gritou “atenção! dispersar ou disparamos! e fora com a bandeira!”
sustivemos a marcha, mas como a retaguarda não parara foi impossível aos da frente conter o avanço. e agora já havia tiros
quando os primeiros manifestantes começaram a cair, estabeleceu-se a confusão geral
muitos não acreditavam no que viam. depois os soldados carregaram sobre a multidão
a minha mãe decidiu acompanhar-nos para mostrar o seu apoio à causa dos trabalhadores
“os manifestantes eram pessoas honestas”, dizia, “tinham trabalhado a vida inteira”
claro que também havia desesperados que o desemprego tornara capazes de tudo
e também muita gente faminta, demasiado fraca para defender-se
continuávamos à frente e não dispersámos quando os tiros começaram
tínhamos a nossa bandeira. era um risco quem a levava e não tencionávamos largá-la
não trocáramos uma só palavra, mas depois pareceu-nos ver gente importante que nos atingissem e abatessem precisamente a nós
que nos arrancassem a bandeira. a nossa. a vermelha
queríamos que todos os trabalhadores vissem quem somos e por quem somos. reconhecessem que somos os trabalhadores
os que nos atacavam portavam-se como feras. precisavam de ganhar a vida e os patrões pagavam-lhes para isso
mas todos acabariam por compreendê-lo. por isso a nossa bandeira, a bandeira vermelha, tinha de ser levantada bem alto à vista dos soldados e de todos os outros
e aos que continuem não é preciso contá-lo
hoje saindo, amanhã ou nos próximos anos, até ela voltar a ser vista
pois julgamos saber, e muitos já o sabem, que ela voltará sempre a ser vista até ao dia em que tudo será totalmente transformado
e esse dia aproxima-se. a nossa bandeira. a mais perigosa para todos os exploradores e todos os tiranos
a mais implacável, mas para nós, trabalhadores, a bandeira de combate decisivo
por isso voltareis sempre a vê-la com alegria ou ódio, conforme a vossa opção nesta luta
só poderá caminhar com a vitória completa de todos os oprimidos de todos os países do mundo
mas nesse dia era o operário luís que a levava
há vinte anos que pertence ao movimento
foi um dos primeiros a divulgar na fábrica os ideais revolucionários
lutámos por salários e por melhores condições de trabalho
negociou várias vezes com os patrões em defesa dos interesses dos seus colegas
a princípio operou em clandestinidade, mas depois admitiu que houvesse um caminho mais fácil
se a nossa influência aumentasse, caber-nos-ia a nós também decidir
viu, porém, que se enganou. ei-lo aqui com milhares de outros atrás, enfrentando como sempre a violência
“entregar-lhes ou não a bandeira?”, perguntou
“não, luís, não a entregues! é inútil negociar o que quisermos!”
e a mãe dele disse-lhe: “não há razão para que a dês. nada poderá suceder-te. a polícia não pode ter nada contra uma manifestação pacífica”
e, neste instante, o oficial da polícia gritou: “entreguem a bandeira!”
e o luís [olhou para trás?] e viu atrás da bandeira os cartazes. e nos cartazes as nossas soluções. e atrás dos cartazes os grevistas da nossa fábrica
e nós ficamos a ver [aquilo?], ali junto de nós, o que um de nós faria com a bandeira
vinte anos de movimento operário, revolucionário, no dia 1.º de maio às onze horas da manhã
e no meio da avenida [?] disse: “não a dou! não haverá negociações!”
“muito bem, luís!”, exclamámos, “é assim mesmo! agora está tudo em ordem!”
“destapem a saída!”, mas tombou à frente com a cara no chão pois a ele já o tinham abatido
e corremos, alguns quatro ou cinco, para segurar a bandeira, mas ela caíra ao lado da minha mãe
então a minha mãe, serena (que pacífica a camarada!), curvou-se e pegou na bandeira
“entrega-me a bandeira, luís!”, disse ela, “entrega-me a bandeira! eu levo-a! as coisas têm de mudar!”
[vocalização]
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