letra de ciclo da vida - gandim
[intro: voz feminina]
é um menino, é perfeitinho
parabéns aos papás, quem é que o quer pegar ao colinho?
[verso 1 – nascimento e infância: gandim]
hm hm, yeah
mal te cortam o cordão umbilical
já têm expectativas e põem pressão em ti
peso e altura, percentil padrão normal
para não destoares e pertenceres aqui
quantos dedos tem?
querem-te perfeito
trejeito do pai, carinha da mãe
“faz lembrar o avô”, diz a avó também
nasces a chorar, mas é para teu bem
condicionado, cão de pavlov
aconchegado, das dеz às nove
fora de horas, não desistеs, choras e tens recompensas
ainda não pensas, mas já existes
cólicas, dentes, fome
mama na boca, mamã dá em louca
gases, sono, não dorme
fraldas, xixi, cocó conforme
papá à beira de um ataque, esgotado sem paciência
papa cerelac sem leite, aguado nem consistência
início da existência, arrotos e biberões
fazer tempo e crescer entre as refeições
aprendes a sentar, depois gatinhas
os primeiros passos, meia dúzia de palavras
turrinha, palminhas
gugu dadá, mamã papá
peak a boo, o bebé não está
tudo o que dizes é engraçado
“oh filho, isso não se fiz”
disfarçam e riem para o lado
“guilherme, assim não!”
porquê? “porque não”
“porque não” não é resposta
“porque eu sou teu pai e a um adulto não se riposta”
é a curiosidade imposta da idade dos porquês
com os deditos pequenitos respondes que já tens “tês”
vais crescendo, infantário, escorregas, aguarelas
brincar com plasticina, mas ainda foges delas
jogas à sardinha, bolas de sabão
esfolas os joelhos, passas a vida no chão
“o que queres ser quando fores grande?”
astronauta, bombeiro ou pirata
“podes ser o que quiseres, meu filho
traça o teu trilho com o teu brilho
se preferires ser futebolista ou cantor
tudo é possível, meu amor
tens o mundo a teus pés, tu é que decides quem és
o futuro é imprevisível
mas vai para a cama, já são dez”
na primária a e i o u
tabuada, 1×1
caderno cheio, estudo do meio
apanhada no recreio
quantos queres tu?
crescer sem receio, memórias para o baú
tazos, matutolas, jogar à bola
fantasmas fluorescentes, primeira consola
tattoo do bollycao, trocar cromos na escola
índios e cowboys com flechas e pistolas
lápis de cera e de cor
primeiro crush, pensas que é amor
pintar dentro dos limites
picotar pelo traço numa esponjinha
cedo te ensinam a não sair da linha
(voz feminina)
tens que olhar para um lado e para o outro
mas depois demoras muito tempo a olhar para o outro
e vêm do outro
saudades da escola nas férias de verão
idades outrora inocentes sem noção
enquanto não há pressão há prémios de consolação e de partic-p-ção
o mundo cabe inteiro na palma da tua pequena mão
[interlúdio: grupo de pessoas]
hoje é dia de festa
cantam as nossas almas
para o menino guilherme
uma salva de palmas
[verso 2 – adolescência: gandim]
yeah
pelos púbicos a nascer, testículos a descer
acne a aparecer, a voz não pára de tremer
tens pressa p’ra crescer mas não sabes o que queres ser
tentas ser fresh e dar flex enquanto desenvolves o teu córtex
trocas o barco pirata da playmobil
pela jenny mccarthy na playboy mil
se a igreja tivesse razão, já tinhas pêlos na palma da mão
já eras cego de tanto montar a tenda em vez de montar lego
inseguranças e pressas p’ra ser adulto, hormonas num tumulto
testosterona a todo o vapor
tesão, paixão, primeiro amor
coração partido, orgulho ferido, ego ressentido
deixas-te influenciar a fumar
para te aceitarem numa tribo
beto, mitra, metal, gótico, punk, dred, emo neurótico, geeks, nerds, populares, hipsters, hippies ou popstars
tens de te enturmar, a turma é feita para te moldar
o importante é não destoar, nem que tenhas de ocultar
a tua personalidade verdadeira
a escola já não é brincadeira
já não esfolas os joelhos e só no fifa é que brincas na areia
de repente tudo é diferente, os professores são stores
o recreio é intervalo, olhas-te ao espelho, achas-te feio e cheiras a cavalo
“venha ao quadro, não sabe resolver a equação?”
não, stora
“não estudou bem a lição?”
não, professora
“tem de estudar mais, então”
sim, senhora
a escola é a tua rédea, olha a média
faz os tpcs, olha o exame, olha a prova global de inglês
“o que queres ser quando fores grande?”
astronauta
“tens de escolher algo mais realista”
pode ser pirata?
“é do teu futuro que estamos a falar e tu aí a brincar?”
então quero ser rapper com autotune ou fazer humor
“não, não, não! engenheiro, advogado ou doutor”
mas eu não podia ser quem eu quisesse?
“isso era antes, agora cresce e aparece, já não és nenhuma criança”
e se eu quiser seguir dança?
“isso é um tiro no escuro, não tenhas esperança, não tem futuro
já não és miúdo, já és graúdo, tens de ser mais maduro
já não tens bibe e babete, já tens 17
já devias saber o que queres fazer para a tua vida toda
não sabes? que se foda
considera-te sortudo, não arrisque tudo, joga pelo seguro
olho no canudo, mantém-te na pista
antes doutor que electricista
mesmo que seja dentista
um diploma para seres alguém
mesmo que acabes a fritar batatas no mc do cacém”
-sino a tocar-
[interlúdio: amigos]
e se o guilherme quiser ser cá da malta
tem que beber este copo até ao fim, até ao fim
e vai a cima, vai a baixo e vai ao centro e vai p’ra dentro e vai p’ra dentro e vai p’ra dentro
“ora aí está, guilherme duarte, bêbado mê’mo à porta”
[verso 3 – faculdade: gandim]
entras p’ra faculdade em tenra idade
de repente, tudo é diferente
disciplinas passam a ser cadeiras e cadeirões
períodos passam a ser semestres
colegas são versões beta de doutores e mestres
praxes, copos, cábulas, apontamentos
arraiais, mais copos, festivais, urinóis nojentos
mais festas, bebedeiras, grego, ressacas, lamentos
festas rascas, rally tascas, directas, fragmentos
massa com atum, drogas em jejum, mil batimentos
mão direita é penalti, melhores anos e momentos
directas, exames, frequências, são tormentos
chumbo foi merecido, contra factos não há argumentos
“a mulher gorda a mim não me convém, não me convém!”
dizes tu antes dos shots, de mamar vinho em pacote
no fim da noite, com um cachorro, até vai bem
o que importa é comer alguém
s-xo, aventuras, sem complexo, faz loucuras
vanessa, dst, tão cliché, mas tem cura
faculdade é a altura, é tipo buffet
a não ser que estudes informática no ist
será que estás na área certa?
haverá outra janela aberta?
quiçá, já é muito tarde para deixar de ser cobarde e partir à descoberta
dúvidas, angústias e o tempo a passar
todos os anos pensas em mudar
mas deixas-te andar, és movido a cafés
se o stor fosse o taveira, davas o cu pelo dez
pedes recurso, só falta um valor
acabas o curso, és um doutor
fim do percurso, acabou a dor
fazes discurso, recebes louvor
benzes e queimas as fitas, foram só oito matrículas
foda-se, saltas e gritas
no fim da noite vomitas
[interlúdio: amigos & gandim]
“a gente não pode vir beber um descafeinado contigo”
“não gozes com pessoas bêbadas, ahn?”
estou a ir agora para casa
“destes momentos bué estúpidos, é juntá-los todos”
ya
[verso 4 – jovem-adulto: gandim]
faz o currículo e carta de apresentação
tens de ser ridículo e dar graxa ao patrão
“adorava imenso que fosse o meu empregador
tenho excelentes conhecimentos de office na ótica do utilizador”
(ya, isso é mais word)
fato e gravata, check
barba aparada, check
unha cortada, check
tudo para no fim do mês teres o cheque
“onde se vê daqui a 5 anos?”
aqui, de certeza, já com carro da empresa, cargo de chefia e responsabilidade
“qual diria que é a sua maior qualidade?”
não sei, é sempre difícil dizer sem vaidade
sou muito pontual, profissional, faço o trabalho bem feito
“e o seu maior defeito?”
perfeccionista, nunca estou satisfeito
e teimoso também, mas isso até acaba por ser positivo
porque me ajuda a alcançar os meus objetivos e chegar mais além
“isso é o que todos dizem”
ahahahahah, ah o chefe tem piada!
“muito bem, o estágio é seu, vai ter um fit na nossa cultura
adn fresh e dinâmico, esperemos que esteja à altura”
reuniões, e-mails, workshops, avaliações
team building, excel, brainstorming, formações, fazer serões
“pode vir trabalhar este fim-de-semana?”
sim, chefe
“pode ficar até mais tarde por causa da timezone americana?”
sim, chefe
“o relatório tem de ficar pr-nto hoje, nem que tenha de queimar a pestana”
sim, chefe
“este ano não o posso aumentar, a sua avaliação foi mediana”
obrigado, chefe
és um banana vendido e rendido
quem não, chora não mama
tu só choras escondido e encolhido
és um vassalo, um escravo 2.0 sem intervalo
picas o ponto em auto-piloto
ficam com a fruta e tu com o caroço
comem-te o cérebro, deixam-te com o osso
és um zombie com pausa para almoço
vais à copa, levas marmita
parece a tropa, sesta na sanita
o melhor que há no teu dia, rh, copa d da maria
quase não dormes, parece que estás num culto
olhas-te ao espelho, pareces um vulto
ris-te de quando tinhas pressa para ser adulto
-risos-
[verso 5 – adulto: gandim]
horas extra, de segunda a s-xta
vives para um sábado bêbado
ressacas dia seguinte do tinto e só te queixas mais azedo que o vinho
arrumas a casa ao domingo, não tarda estás a ir ao bingo
segunda, voltas à labuta, desfruta, bem-vindo à idade adulta
a semana é só work, já não há hobbies
eventos só de network sem os teus homies
já nem passas tempo com os amigos, passatempo só papa-figos
“a ver se combinamos um almoço”
ya boy, temos de fazer o esforço
“próximo sábado, que dizes, uma night out?”
não vai dar, tenho de ir trabalhar
“devias descansar, olha o burnout”
por acaso ando de rastos, confesso
“epá, ainda acabas com um esgotamento do stress”
ya… irs, água e luz para pagar, inspecção do carro, ppr para poupar, casar, ter filhos, assentar
a tua vida é tão b-n-l como estas rimas em ar
“na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, aceita para sua esposa?”
sim
“tem a certeza?”
sim
vai ao ikea o dia inteiro
és uma formiga no carreiro, mas não vais em sentido contrário
não és zeca, és carneiro
cama, cómoda, já está, falta o serviço de chá
ver novelas no sofá
punhetas só no chuveiro é que as há
tem filhos, é o que a sociedade te pede, segue, não a desiludas
sonhos desaparecem, triângulo das bermudas
cede, não sejas um judas
é o próximo passo deste plano a um traço
um compasso de espera
9 meses até uma nova primavera
já nasceu, paizão protector, uma fera
amor, paixão sincera
mas a tua vida é slogan de imobiliária… já era!
mais um rebento para dar alento ao casamento
vive para eles, sê feliz por eles, sonha com eles, não te separes, pensa neles
os anos vão passando, tu e ela já só são colegas de casa
o amor louco de quatro virou conformado no quarto
dividem a renda, sem amor nem tenda
sem nada que vos prenda
o casamento já é só promessa, compra e venda
a expectativa é inimiga da felicidade e a sociedade tem-na grande
enchem-te dela em tenra idade e depois tiram-te o volante
entras num círculo viciado, num circuito fechado, meio ressabiado
a tua animação é dizer mal do colega do lado
mais uma voltinha ao carrossel, és peão neste jogo de xadrez
ao abismo fazes rapel e da depressão ficas freguês
rewind! segunda-feira outra vez
trânsito, atrasado, colega demasiado feliz logo de manhã feito atrasado
trânsito, chegas a casa cansado de estar todo o dia sentado
tudo pela promoção pela carreira
sem motivação pela carteira recheada
uma mão futura cheia de nada
estabilidade ou felicidade? voltar atrás? agora já é tarde
tinhas o mundo a teus pés mas entre vocês estava um tapete
e algures entre dois cafés, puxaram-to de repente
“ando aí com um projecto”, dizes tu como quem mente
que ainda vai mudar de trajecto e que tem um futuro pela frente
nah, destino traçado, laçado e embrulhado
dados lançados, tudo tratado, trato fechado
sempre te ensinaram a não arriscar e a ter cuidado
és só mais uma cabeça de gado
[interlúdio]
eu quero ser feliz, porra!
eu quero ser feliz, agora!
que se foda o futuro!
[verso 6 – meia-idade: gandim]
olhas-te ao espelho e a gravidade já fez efeito
sem perceberes, já passaste da metade
parabéns, chegaste à meia-idade
a desforra é um descapotável desportivo
sentes-te novo, sentado no assento aquecido
faz todo o sentido neste momento
os poucos cabelos que te restam ao vento
sentes-te velho, tem um affair
não importa com quem, qualquer mulher
queres sentir-te vivo e desejo ardente
aquela tesão e paixão como um adolescente
sentes-te troika no meio da crise existencial
é um deslize, sem histórico, dizes que é normal
queres que o cérebro sintonize outro c-n-l
tudo o que ele precise para esquecer a season final
calvície, já vês a velhice no horizonte
dores na perna e cervical, sem saberes d’onde
procuras a fonte
medo de morrer mais perto e real
vai ao check-up anual
“de que é que se queixa, afinal?”
tudo um pouco, cada vez mais mouco
“as suas análises podiam estar melhores para a sua idade”
alguma coisa de grave, doutor?
“nada que não se possa compor. bebe muito, normalmente?”
não, é mais socialmente
“então vai ter de ter cuidado e fazer uma alimentação diferente”
porquê? se a tiver, vou viver para sempre?
“a morte é inevitável, mas sempre vive mais uns anos saudável”
mas sem prazeres, não sei se não é descartável
é como estar parado na montanha russa
“a escolha é sua, deixe lá ver a próstata, dobre-se e tussa”
nem pestaneja, nem te aleija, habituado
já não é a primeira vez que és enrabado
que a vida te mete os dedos no cu
a realidade não tem medos nem tabu
dás por ti, és mais um cota rebarbado
a dar likes em miúdas novas que mostram o rabo
“a juventude está perdida”, um desabafo
mas culpas os outros pelo teu fracasso
a felicidade dos outros sabe a estilhaço
para os teus filhos não passas de um embaraço
começas a sentir-te um chaço, velho e a mais
prometeste mas estás a um passo de ficar como os teus pais
[interlúdio: manuel luís goucha]
“ora então muito boa noite, cá estamos nós para o espaço viva melhor
vamos falar do livro que já vendeu em portugal 400 mil exemplares”
[verso 7 – sénior: gandim]
65, já és sénior
está na hora de curtir a reforma
mas não há energia, nem estás em forma
tu e ela já só refilam pela tampa da sanita pela guita
só destilam ódio e rancor, já são estranhos sem amor
e já só se cruzam no corredor
diálogos são monólogos e sabem a bolor
os dias são takes repetidos sem fulgor
casa é set e vocês são actores
já não contracenam, é só guião de mau humor (e um mau escritor)
“compraste aquilo que te tinha pedido?”
o quê?
“o alho para o estrugido que te tinha pedido quando foste lá fora”
esqueci-me, queres que vá lá agora?
“não, deixa estar…”
de certeza?
“sim, já disse”
ok, mas depois não te ponhas a refilar disso
“és sempre a mesma coisa, nunca ouves o que eu digo, só queres saber do teu umbigo”
olha quem fala, eu estou sempre a dizer para não deixares a luz da sala ligada
“e o que é que isso tem a ver com a conversa?”
nada, nada, nada, ora essa
eu não posso dizer nada, tu és perfeita, nunca estás satisfeita
“só pedi para comprares alho para a receita, achas que foi pedir muito, isso?”
já pedi desculpa, para que nunca te esqueceste de nada, tenho que andar aqui submisso
“olha, nunca me esqueci da aliança e do compromisso”
outra vez com isso? disseste que tinhas perdoado mas puxas sempre dessa carta
“menti. perdoei, mas não esqueci, se calhar agora já estou farta, mas deixa lá, não se passa nada”
se não se passa nada, mais valia teres ficado calada
“mais valia não te ter contado”
já nem ficas chateado, o drama sem cama é melhor do que o silêncio conformado
dizes-te feliz reformado mas o segredo é que o medo de já não seres útil te deixa transtornado
o que é que vais fazer com o tempo que te resta?
a nostalgia é cada vez mais indigesta
tempos que já não voltam, arrependimentos, ressentimentos
amigos perdidos para o tempo de quando pensavas viver para sempre
uma excursão no douro antes de estares a soro
são os teus anos de ouro antes de seres só dores
faz um cruzeiro, gasta o dinheiro, aluga um veleiro
sem trabalhar, tudo é recreio
olha a saúde, vai ao celeiro
o prejuízo é a tua cenoura e o medo é teu conselheiro
dá umas corridas, faz um jantar ligeiro
tenta adiar o fim, o futuro é já ali
será que ainda vais a tempo da viagem a pequim?
anos e anos, enganos e danos
tens as gavetas cheias de planos
o livro que nunca escreveste
a árvore que plantaste, mas onde já esqueceste
dias e dias, horas perdidas
tens as tuas memórias doridas
agarrado a tudo, menos ao presente
obcecado pelo futuro, como se fosses vidente
há vidas piores do que a tua, é certo
mas há quem não possa sonhar longe, só ao perto
mas tu tinhas a vida pela frente e isso deixa-te inquieto e corrói-te por dentro
os teus filhos já pouco te ligam e quando tu ligas já pouco atendem
a única chama de felicidade são os teus netos que a acendem
a única razão dos teus afectos são a motivação para não estares quieto
lembram-te do que podias ter sido, porque na inocência não têm noção que são completos
será que os vais ver crescer?
“avô, vais à escola ver a minha peça?”
claro que sim, meu amor
dizes com pressa e cheio de medo de não cumprires a promessa
os anos vão passando mais depressa
a chama acesa desvanece, já nada te motiva, nada te arrefece, nada te dá gozo
olhas-te ao espelho e és um idoso
-sinos-
[verso 8 – idoso: gandim]
se calhar trabalhaste demais, desperdiçaste a juventude
vida inteira a ganhar e a querer mais para agora gastar na saúde
não saltaste de paraquedas, não tocaste um instrumento
não disseste “amo-te” a toda a gente
não fizeste uma tatuagem nem um safari selvagem
não deste a volta ao mundo nem nada que se pareça
não nadaste com um tubarão, não fizeste a diferença
não viste um vulcão em erupção
não mergulhaste na barreira de coral
não fizeste a route 66
nem sequer viste a aurora boreal
a tua bucket list agora é chegar ao natal para ver os filhos discutir pelo capital e pelas partilhas
mas já ninguém quer partilhar tempo contigo
talvez te visitem para o ano, quando estiveres no jazigo
sentes-te um fardo, já não comes sozinho
usas resguardo, eufemizam os velhinhos
não queres incomodar, metem-te num lar
não estás mal, mas é estação terminal
segunda infância, mas é de circunstância
fralda, babete, já tens 87
olhas-te ao espelho e não te reconheces
os amigos, onde estão? os sortudos já lá vão
os outros? os outros levou-os o tempo sem nenhuma razão
enterrado ou cremado, tanto faz
já só queres ser levado, ‘tar em paz
os teus dias são um flashback, já só desejas o heart attack
sentes-te confuso, tens a morte em snooze
todos os dias a adias um pouco
vives na fantasia, chamam-te louco
quem sou eu? não sei, não me lembro
em que mês estamos? novembro?
“com este calor? não vê que é verão?”
és o meu filho rui, então?
“não, o rui já morreu, avô, sou o seu neto, já se lembrou?”
morreu? ainda ontem me veio visitar
“anda filho, deixa-o estar, não insistas, não vês que o avô tem demência?”
chegas ao fim em completa dependência, com rasgos de lucidez no meio da dormência
tratam-te com condescendência, como um r-t-rdado
“quer um bocadinho de gelado?”
cansado, acamado, ouves o último suspiro do colega do lado
“o que é que está a fazer, avô?”
o mesmo que ele, coitado
a ver se vou, à espera da morte
“ainda vai ter de esperar muito”
só se não tiver sorte
“vamos, está na hora de ir
até amanhã, venho cá se puder”
até amanhã… se deus estiver distraído, ou não quiser
monitor de sinais vitais a desligar-se
[verso 9 – morte: gandim]
“bem-vindo! queres entrar? achas que tens o que é preciso?”
onde é que eu vim parar?
“ao paraíso. também há quem lhe chame além”
quem diria… nunca pensei que fosse real, amém
“pois, sempre tiveste desdém por mim, mas afinal…”
estava errado, não foi por mal, acontece
nunca pensei que existisses e ouvisses preces
“tens o meu perdão, mas antes de abrir o portão, preciso de saber a tua motivação para entrar no céu”
é este o julgamento final? sou um réu?
“não, é mais uma entrevista aos que não estão na guest list
bom, mas onde é que te vês daqui a 5 anos?”
não sei, dizem que para deus se rir temos de lhe contar os nossos planos
“boa resposta, podes entrar, espero que te agrade
ou preferes voltar à terra, para uma segunda oportunidade?”
está a falar verdade?
“não e nem é má vontade, eu não existo, sou uma manifestação do teu inconsciente, apesar de não seres crente
é um truque do teu cérebro, do nosso cérebro”
neurónios disparam descontrolados no leito da morte
a tentar tudo aquilo que te conforte
para te distrair nesta angústia, astúcia da evolução
o nada vem aí a qualquer momento, nada vai importar então
o vazio da ilusão é melhor que o sofrimento do arrependimento
não há luz, só há neblina
últimas sinapses misturadas com morfina
mecanismo de sobrevivência, auto-defesa da tua essência
insolvência da alma à procura da recompensa
não há extrema unção porque não há penitência
agora vem o nada
não há alma, tudo acalma depois da turbulência
órgãos em falência
eu sou as últimas palavras da tua consciência
não tenhas medo, fica descansado
tiveste uma boa mão, espero que a tenhas usado
foste privilegiado, espero que não tenhas desperdiçado
tu tiveste uma boa vida
espero que a tenhas aproveitado
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