letra de sursis i - c57 x rizz
decidi começar na pureza
procurei na profundeza do mar
mergulhei. para minha surpresa:
aguentei uma década sem respirar
p-ssei pelo talude continental
tirei doze meses para me organizar
continuei em direcção à dorsal
e mais fundo senti as correntes mudar
vi a flora abissal e a pressão aumentar
onde neptuno forjou o tridente
ouvi sereias chamar e cantar:
“deixa a vista turvar, vais ver nitidamente”
na cidade perdida, vi despertar
rostos nos caminhos que percorri
pudesse dizer, descrever, desvendar
os monstros marinhos que lá conheci
eram tantos e falavam-me de emoções
mostraram-me que o ódio era um engano
disseram: “nós somos só projecções
apenas o fruto do espírito humano
a paz do medo e da volição
um vestígio fugaz de simbolismo
mas se, por ti, não for indiscrição
diz-nos então: que te traz ao abismo?”
eu desci na procura, hà uns anos
mas entretanto acho que me perdi
sinto que já corri cinco oceanos
e o que procuro não está por aqui!
mas eu descobri que trago nas veias
o sangue do primeiro navegador
guiando-me pelo choro das baleias
p-ssei para lá do cabo bojador
foi revelador: fiz das marés um lar
nelas fui vizinho do adamastor
pediu-me um ano para me falar
dessa doença benigna que é o amor
ao vigésimo trimestre, fiz um desvio
embarquei no holandês voador
mas nos destroços do avião-navio
não consegui sentir seja o que for
pensei, reli e rescrevi as crónicas
mas no fundo não as compreendia
aproximei-me das placas tectónicas
para ver porque é que o mundo tremia
com seres da luz que avistei à distância
aprendi a resistir sem resistência
na escuridão mostraram a importância
e os segredos da bioluminescência
na litoesfera ganhei paciência
apurei o sentido de orientação
e já na direcção da consciência
aperfeiçoei a ecolocalização
foi inesperado, senti-me embalado
familiarizado a presença distante
sinto que estou demasiado integrado
nesta violência tão reconfortante
o mundo silêncioso chama tão alto
não me lembro de adormecer sem ouvi-lo
tempestuoso, ele clama de -ssalto
e estou exausto de tentar impedi-lo
todos os dias o deslumbramento
desde que perdi de vista o farol
há tanto tempo que não sinto o vento
creio que já esqueci o toque do sol
a procura envolveu-me no escuro
começo a pensar: quem tenho eu a culpar?
sinceramente não sei que procuro
e receio que já não sei como voltar
“é normal que -ssim seja
são efeitos secundários da osmose
quando a voz do mar nos corteja
sem que se preveja a metamorfose
como ninguém sabemos como é
vaguear sem ter alguém que te acuda
e se quiseres, ao mudar a maré
aproveitamos e damos-te uma ajuda”
e então agarrei-me às fendas branquiais
e de seguida eles nadaram na vertical
p-ssamos por corais hidrotermais
saímos do abismo existencial
para lá das fobias torrenciais
a temperatura foi ficando constante
chegamos às águas superficiais
o azul foi ficando mais brilhante
de rompante vi o céu a surgir
a luz cegou-me momentaneamente
respirei de alívio ao emergir
e senti o peito encher-se novamente
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